16.2.14

No dia Carlos Paredes, uma (difícil) selecção


Nasceu em Coimbra, neste dia de 1925. E não morreu em 2004.
Canto do amanhecer continua a acompanhar muitas manhãs. E os demais cantos: do rio, do trabalho, do amor... no Concerto em Frankfurt (no qual se ouve a sua respiração). 
Verdes Anos (1967) são para sempre. 
Porto Santo (1967) é tocado com Mário Laginha em 1992.
Frustração arrepia.

Mia Couto dedica-lhe este poema.

Não são dedos:
são lágrimas.
Não são cordas:
são fios de saudade.
Não é um país : é um coração que soletra lágrimas
na saudade que temos de nós mesmos.


Ler biografias na wiki e no Museu do Fado. E o blog umaguitarraportuguesa.

Carlos Paredes é música em si, com o pai - Artur Paredes e Variações - ou com Charlie Haden; este, marcado pela prisão pela PIDE no Festival de Jazz em Cascais (1971) e, mais tarde, no Coliseu de Lisboa (para ouvi/er em duas partes: parte um; parte dois).

Mudar de vida é preciso, com - neste caso - a flauta de Paulo Curado.

Um «Discurso» fabuloso - que ouvimos ao lado do pai, num Abril comemorado a rigor - e... tenho dito.

10.2.14

Dia de Bertold Brecht

Aos Que Virão a Nascer

É verdade, vivo em tempo de trevas!
É insensata toda a palavra ingénua. Uma testa lisa
Revela insensibilidade. Os que riem
Riem porque ainda não receberam
A terrível notícia.

Que tempos são estes, em que
Uma conversa sobre árvores é quase um crime
Porque traz em si um silêncio sobre tanta monstruosidade?
Aquele ali, tranquilo a atravessar a rua,
Não estará já disponível para os amigos
Em apuros?

É verdade: ainda ganho o meu sustento.
Mas acreditem: é puro acaso. Nada
Do que eu faço me dá o direito de comer bem.
Por acaso fui poupado 

(Quando a sorte me faltar, estou perdido)

Dizem-me: Come e bebe! Agradece por teres o que tens!
Mas como posso eu comer e beber quando
Roubo ao faminto o que como e
O meu copo de água falta a quem morre de sede?
E apesar disso eu como e bebo.

Também eu gostava de ter sabedoria
Nos velhos livros está escrito o que é ser sábio:
Retirar-se das querelas do mundo e passar
Este breve tempo sem medo.
E também viver sem violência
Pagar o mal com o bem
Não realizar os desejos, mas esquecê-los
Ser sábio é isto.
E eu nada disso sei fazer!
É verdade, vivo em tempo de trevas!

(...)

(B. Brecht, n. 10.Fevereiro.1898 - f. 14.Agosto.1956) 

... e é só!

2.2.14

... que os barcos voltem a subir o Guadiana... valeu a pena?


O FUGITIVO


"An harbour shall be that is to found and-oh! 
Ever again-conquered"


Um homem corre na noite
é uma imagem banal
podia ser em Madrid
ou Johanesburgo,
ou em S. Paulo
ou Budapeste, Nova Yorque
ou Hollywood
ou é claro em Portugal
um homem corre na noite
é uma imagem banal
Porque foge? De onde vem?
porque olha para tráz inquieto?
Será soldado? vagabundo?
criminoso? ratoneiro?
será apenas o primeiro?
dos que vão fugir com eles?
Foge p'ra salvar a pele
só a sua? a pele dos outros?
a pele clara ou escura?
quanto tempo vai durar a sua fuga?
quanto dura? o que espera?
o que espera o homem --fera?
se chegar a quem o espera?
alguém o quer?alguém se acende?
alguém o chora?
alguém por quem ele chorou
chorará por ele agora?
alguém que nunca o traírá
e se sim., onde será?
Um homem luta contra o sangue
que derrama
e diz: faleu a pena?

Que os barcos
voltem a subir o Guadiana
vindos de longe
do mar

Que os barcos
voltem a subir o Guadiana
descarregando à passagem
do o trigo
que o cavalo esbaforido
chegue à relva, sua cama
que o fugitivo
encontre o seu porto de abrigo

Um homem corre na noite
é uma imagem banal
esgueirando de holofotes
com a estrada que atravessa
se confunde
com o seu breu do seu corpo
se confunde
e se passa um muro branco
fica branco como o cal
tal e qual
o camaleão
é uma imagem banal

Um homem luta contra o sangue
que derrama
em que cama
terá ele o seu repouso?
está ancioso? e como não?
não estaria quem pisasse
um desconhecido chão?
Não estaria de garganta afogueda
quem por nada
assim fugisse?
quem por tudo suplicasse
dai-me forces, dá-te forces
a ti próprio te confias
dá-te alento. dá-te tempo
dá-te dias
sobrevive de agonies
respirando sobrevives
sobrevive
Um homem vive
contra o sangue
que derrama
e diz: valeu a pena?
Que os barcos
voltem a subir o Guadiana
descarregando à passagem
do o trigo
que o cavalo esbaforido
chegue à relva, sua cama
que o fugitivo
encontre o seu porto de abrigo

Um homem corre na noite
é uma imagem banal
porque insiste? porque teima?
não há pânico na rua
não há fogo no quintal
labaredas? só nas camas
dos amantes
já distantes
chegam ruídos, utopias
quanto vale uma utopia?
vale tudo? quanto vale?
um homem corre na noite
é uma imagem banal
o que fez o fugitivo?
se está vivo é porque more
se morrer é porque o matam
se o matarem sera justo?
inocentes são os culpados de outros crimes
de que culpa?
de paixão? de inconsciência?
será justo ou não sera
desbaratar a inocência
tão a custo conquista?
porque corre o fugitivo nessa estrada?

E agora para para agora
o homem para
para agora para agora
será que sente que chegou a sua hora?

É impossível
Não é possível
correr tanto
e pensar tão
lucidamente
o coração
não aguenta
a cabeça também não
porque tenta
ultrapassar os seus limites?
provavelmente
é por vontade de viver
(quente quente...)
que ultrapassa os seus limites

diz para o seu coração

sentes que valeu a pena?
se te obrigam a fugir
mais te obrigam
a chegar junto a ti
valeu a pena?

...de Camões, e da luz que dá na cor...


"Amor é fogo que arde sem se ver
é ferida que dói e não se sente
é um contentamento descontente
é dor que desatina sem doer"

(Camões)

Que o poeta de todos os poetas
me conceda boa estrela
que a estrela de todos os astros
me premeia na lapela
prémios de honor
prefiro os muitos
oferecidos pelas mãos do amor
coroando o amor e os seus heterónimos
nem vão caber nos Jerónimos

Amores anónimos não há
e assim foi pela madrugada
mesmo que seja um "assim fosse"
vou nomear-te namorada
ninguém já soube o que é o amor
se o amor é aquilo que ninguém viu
uma cor que fugiu
de um pano leve
e pairou serena e breve
no ar
(pousa agora, borboleta
na pena deste poeta:)

É uma cor que dá na vida
o amor
é uma luz que dá na cor
É uma cor que dá na vida
o amor
e uma luz que dá cor

mas é uma batalha perdida
que se trava com ardor
é uma cor que dá vida
o amor
dor que desatina sem doer

Se devagar se vai longe
devagar te quero perto
mesmo que o que arte nenca cure
vou beijar-te a sol aberto
é já dos livros que o instante

se parece tanto com a eternidade
e que o amor, na verdade
só se cansa de ti
se de ti mesmo te cansas

Mordidas mansas, emoções
suspiros densos, afagares
liberto das definições
o amor define os seus lugares
ilhas desertas até ver
ver o sol, a chuva
o arco do corpo
arco-íris, corpo a corpo
cara a cara, cor a cor
incadescendo o olhar
(pousa agora, borboleta
na pena deste poeta:)

E ao pôr o dedo nas feridas
que supúnhamos curadas
provoas de fogo atravessamos
no mar alto festejadas
não se contrala o inesperado
nem se diz o indizível do amor
uma cor que fugio
de um pano leve
e pairou serena e breve
no ar
(pousa agora, borboleta
na pena deste poeta:)

É uma cor que dá na vida
o amor
é uma luz que dá na cor
É uma cor que dá na vida
o amor
e uma luz que dá cor.

...actualidade de Sidónio Muralha

Pequenos deuses caseiros

Pequenos deuses caseiros que brincais aos temporais,
passam-se os dias, as semanas, os meses e os anos
e vós jogais, jogais
o jogo dos tiranos.

Pequenos deuses caseiros, cantai cantigas macias,
tomai vossa morfina, perdulai vossos dinheiros,
derramai a vossa raiva, gozai vossas tiranias,
pequenos deuses caseiros.

Erguei vossos castelos, elegei vossos senhores,
espancai vossos criados, violai vossas criadas,
e bebei, bebei o vinho dos traidores
servido em taças roubadas.

Dormi em colchões de penas, dançai dias inteiros,
comprai os que se vendem, e alteai vossas janelas,
e trancai vossas portas, pequenos deuses caseiros,
e reforçai, reforçai as sentinelas.

Que é sempre um dia a menos este dia que passa,
e cada dia a mais aumenta o preço da traição,
e cada dia a mais aumenta o preço da desgraça,
e a nossa moeda não é piedade nem perdão
porque foi temperada com todas as lágrimas da raça.
Não, pequenos deuses caseiros, não!

Sidónio Muralha (1920-1982)