22.6.15

Há dias de bons espantos em português!

O objectivo do dia era a exposição dedicada à obra de Josefa de Óbidos. Complicada a zona, avancei até conseguir estacionar no Campos das Cebolas - ainda estava fresquinho, de manhã. A oliveira, que veio de Azinhaga, sob a qual estão as cinzas de Saramago, sugeriu que finalmente entrasse - com tempo de sábado de manhã - para ver a Casa.

Da Casa dos Bicos - na qual entrei pela primeira vez na XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura - já sabia a história; não tinha, contudo, visitado o núcleo arqueológico, musealizado in situ, que vale a pena descobrir, e que faz parte do Museu de Lisboa. A Lisboa romana está ali documentada, de forma clara e concisa.

As Muralhas de Lisboa -percurso pedonal «Cerca Velha» - convidam a passear entre a Rua do Chão da Feira e a Porta da Alfofa (mas isso ficou para outro dia).



Aceitei o conselho da vigilante e comecei pelo 4.º andar da Casa dos Bicos. 
Não é pacífica a intervenção dos arquitectos Manuel Vicente e José Santa-Rita Fernandes, mas sente-se que o espaço respira, fala.
Espanto um. Um busto de Vasco Gonçalves.
A Rosa contou-me a história. Um dia, alguém da família de Vasco Gonçalves ouvi uma conversa entre os dois: quando morrermos as nossas bibliotecas deviam ficar juntas. Assim, foi: a família de Vasco Gonçalves depositou a biblioteca pessoal na Fundação José Saramago, onde pode ser consultada ao lado da de Saramago.

E, a seguir, sugeriu que visse pequenos filmes na sala, onde estão expostas ilustrações de André Letria para o livro «A maior flor do mundo».

Espanto dois: outra Josefa.
Depois das vitrines onde encontramos as novas edições de obras de Saramago, com títulos manuscritos por outros escritores (seleccionei dois: letra de José Mattoso e Chico Buarque), sentei-me e encontrei outra Josefa!

É um curto filme (5 m.; 2014) de André Raposo, com a sua própria avó, que recria «Carta para Josefa, minha avó». Podia também ser dedicada às minhas - que também não sabiam ler, mas também foram belas e também foram inteligentes... por que foi então que lhes roubaram o mundo? O texto foi publicado neste livrinho - que comprei em 1985 por 40$00 (à tarde encontrei por 50 €, na antiga Sá da Costa, reaberta...).

A Rosa contou-me, quando me levantei, que às vezes há meninos que vêem o filme e choram, também.
Desci até à loja. Encontrei a Blimunda, em papel. Mas ela está disponível aqui. O número de Junho marca os cinco anos sobre o «não estar» de Saramago.
A exposição «A semente e os frutos» abriu e lá está, para ler, sentar, ouvir, pensar, ver... 
Explica Saramago por que motivo escreveu «A viagem do elefante» e é bonito.
E, saí, entrei pela Porta do Mar em direcção à Sé. Lembrei-me que o Museu de Santo António foi, há pouco tempo (2014), renovado: espreitei, não sem antes encontrar aberta a igreja onde se diz que nasceu Fernando de Bulhões - decorria uma missa em italiano; não sem antes olhar um altar de Santo António; não sem antes ver uma mendiga de rojo no adro.
É verdade: o museu é minúsculo, não é fácil encontrar a legenda de algumas peças sem conhecer os meios de expressão museal, mas tem muitos filmes que não vi.



Fome eliminada na Princesa da Sé, não sem antes encontrar a praga dos tuk tuk... caminho para ver o que descreveram como «fraquinho».

Espanto três: Museu do Aljube - Resistência e Liberdade. Espanto bom! Não é «fraquinho».

Há uns anos, visitei o Aljube, para ver uma exposição temporária que, decerto, esteve na génese da investigação para o actual museu, inaugurado em Abril último. Era um desejo, uma necessidade, uma falha na história da cidade.

Quando, pouco depois de inaugurar, me disseram «é fraquinho», estranhei, dada a equipa envolvida. Confirmei: não, não é fraquinho. É um muito bom Museu em Lisboa, para o país e para os turistas nacionais e estrangeiros (desde que o procurem e entendam inglês...). 

É estranha esta sistemática forma de nos classificarmos como «fraquinhos». Não somos fraquinhos! 

Os nossos Museus são tão bons como os de outros países. O Museu do Aljube é diferente do de Pawiak ou do da Insurreição de Varsóvia (Varsóvia), do do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, da Terror Háza de Budapeste, do memorial do campo de concentração do Tarrafal
Porque não somos iguais, somos diferentes. Embora a dor, o sofrimento, a morte, a fome, sejam comuns - somos diferentes países: óbvio.

Catálogo da exposição permanente (à esquerda) e brochura da exposição temporária (à direita)
Há, hoje, um «Dark Tourism» que pode ser usado de formas diferentes, pelos diversos promotores e visitantes. Em geral, os Memorais ou Museus dedicados a períodos da História que provocaram dor, sofrimento, morte, constituem-se como meios de garantir que as circunstâncias políticas que desencadearam essas épocas são recordadas, criando um circuito de Memória Colectiva que - não evitando que «o Mal» se repita... -, pelo menos é tornado visível e dá voz, e homenageia quem resistiu ou pereceu, dá voz a quem sofreu.

No Museu do Aljube fala-se de pessoas e das circunstâncias em que se viveu em Portugal durante o regime de Salazar e Caetano. É de pessoas que os Museus falam. Em Portugal, o Aljube fala de portugueses torturados, perseguidos, dominados pelo medo, pela censura, pela PVDE/PIDE/DGS, pela pobreza, pela guerra colonial, pela trilogia «Deus, Pátria, Família». E fala dos resistentes e dá voz aos que chegaram até nós, através dos seus depoimentos.

O Aljube não é Pawiak - antiga prisão do tempo czarista musealizada (onde quase vomitei dada a crueza do discurso e o ambiente pesado do espaço), usada depois pelos nazis e a seguir pelo regime pró-stalinista na Polónia; o Aljube não é o campo de concentração do Tarrafal, no qual o abandono não permite - a alguém sem conhecimento do local - perceber o contexto do campo; não é a Terror Háza, sede das polícias nazi e húngara-soviética; Aljube não é um parque de esculturas, como o Memento Park de Budapeste; não é o campo de Auschwitz-Birkenau, onde - após os primeiros 5 minutos de visita - se instala um incómodo silêncio entre as pessoas e um permanente acto de evitar olhar o ser humano ao lado, por tudo nos parecer tão desumano; Aljube também não é o museu da Insurreição de Varsóvia, que apresenta o contexto e o momento da mesma de forma esclarecedora, sentida, vivida - com recursos multimédia e museográficos que não fazem da exposição a crueza que se cheira/vive em Pawiak.
Catálogo da Terror Háza e do Memento Park (Budapeste)
O Aljube fala de nós, de Portugal. Fala do que tem de falar, diz o que tem a dizer, com bons meios de o comunicar nos dias de hoje. Podia ter mais informação? Sim - sempre. Mas para quê? É um Museu: diz o que se quiser ler, ver, sentir. Não é necessário que os curros estejam com o cheiro dos anos 40-40 para serem mais verdadeiros. Fala-se da dor, da tortura, da pobreza, dos efeitos da guerra colonial, do silêncio, do medo. E fala-se da resistência, dos que «ficaram pelo caminho» e dos que chegaram e hoje testemunham.
E por isso, é sempre um «murro no estômago»! Em particular, nos dias que vivemos...
E devia ser obrigatório visitar o Aljube, tal como devia ser obrigatório visitar Auschwitz/Oswiecim até ao 12.º ano.

No piso superior da antiga cadeia do Aljube, há o bar do Museu. A senhora, que lá estava de serviço, insistiu para que eu bebesse água; aceitei e ficámos à conversa.
O que dizem os visitantes?, perguntei-lhe.
Contei-lhe acerca do comentário «é fraquinho». Respondeu-me: «Temos sempre de dizer mal; faz parte da maneira de ser portuguesa.» E disse-me que há pessoas que não conseguem passar do primeiro piso: ficam muito incomodadas, porque lhes vem «o passado ao presente»; outras, em grupos organizados - escolares ou não - sabem ao que vêm e (re)descobrem Portugal na História do século XX, aprendem, questionam, conversam,... Outros saem calados, nada perguntam. Há dias, uma senhora, de idade, sentiu-se mal; foi sozinha e emocionou-se, chorou muito e falou: esteve ali presa e foi interrogada. Aliviada por o edifício estar «tão diferente do que era no meu tempo», reviveu no entanto o que passou. E agradeceu por existir o Museu do Aljube, porque conta o que ali se passou.



Espanto quatro: a exposição «Tesouros da Fotografia Portuguesa do século XIX». Linda!
Este pequeno filme sintetiza o que ali se vê, só até dia 26 de Junho, ali no Museu do Chiado (MNAC).



Espanto cinco: na antiga Igreja de São Julião há ainda pouco a ver, mas dada a curiosidade de há décadas...
Será aqui o futuro Museu do Dinheiro...

Para já, vê-se a Muralha D. Dinis. E é mostrada de forma interessante... e mais não digo: vão ver!


E, no fim do dia de cansaço e calor, uma memória de infância numa montra... cantis!

E, como escreveu Saramago, no Ensaio sobre a cegueira:
«Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.»

E resolvi, por isso, escrever um pouco sobre as surpresas que nos pode revelar um dia de sábado.
Lisboa merece e nós também!